quarta-feira, agosto 29, 2018

IMAGINÁRiO #732

José de Matos-Cruz | 24 Novembro 2019 | Edição Kafre | Ano XVI – Semanal – Fundado em 2004

PRONTUÁRiO

TESTEMUNHOS
O melodrama humanista - para usarmos a definição de um dos maiores actores clássicos, Spencer Tracy, que tão bem o assumiu e simbolizou - é uma das vertentes essenciais do cinema americano, sob o signo de Hollywood. E, ciclicamente, voltam a percorrê-la realizadores de prestígio firmado, como Mimi Leder - uma das raras mulheres com tal estatuto, e favorita do produtor Steven Spielberg - com Favores Em Cadeia (2000), partindo de um romance de Catherine Ryan Hyde, adaptado por Leslie Dixon. Em causa, está uma leitura reformista, simbólica, impregnada pelos valores éticos e testemunhadores, a sublimar em tempos de crise - numa sociedade insolidária, com o desmoronamento da família, a rotura entre gerações, a incomunicabilidade pessoal. Mas numa abordagem contemporânea, em que a expectativa intimista substituísse a fantasia convencional, deixando patente a relação masculino/feminino, que Mimi Leder, de um modo subtil, reverte e desmitifica, quanto às respectivas correspondências sexuais. Eis um olhar inquieto, de múltiplas arestas e facetas… IMAG.728

PARLATÓRiO

Estou cansado e, às vezes, deprimido com as políticas miseráveis ​​deste país… Os últimos dez ou doze anos da minha vida, passaram-se entre os especuladores sórdidos nos Estados Unidos e os aventureiros políticos em Espanha, tendo-me mostrado, tanto, o lado escuro da natureza humana, que eu começo a ter dúvidas dolorosas sobre o meu próximo; e a olhar para trás, com tristeza, para o período confiante da minha carreira literária, quando, pobre como um rato, mas rico em sonhos, via o mundo através da minha imaginação, e era capaz de acreditar que os homens eram tão bons quanto eu desejava que eles fossem…
Washington Irving

Se algum dia alguém me perguntasse que aprendizagem deveria um jovem fazer para chegar a romancista, se o ofício se ensinasse, eu diria que enquanto a vida lhe não desse todas as voltas e reviravoltas, amores, sofrimentos, repúdios, sonhos, frustrações, equívocos, etc., etc., seria avisado que o mandasse ensinar a sapateiro, não para saber deitar tombas e meias solas, porque nem para tanto ele usufruirá, às vezes, com a escrita, mas para que ganhasse o hábito de padecer bem, amarrado ao assunto durante largos anos, antes que provasse o paladar gostoso de algumas horas de pleno prazer.
Alves Redol
VISTORiA

Vou de Suspiros

Vou de suspiros todo est’ar enchendo,
vou a terra de lágrimas regando,
mais água aos rios, mais às fontes dando,
e com meu fogo em tudo fogo acendo.

E quando os olhos meus, senhora, estendo
para onde o Amor e vós m’estais chamando,
as altas serras em qu’os vou quebrando
da vista me tolher s’estão doendo.

Mas nisto acode Amor, que sempre voa;
eu pelas asas, eu pelo arco o tenho,
‘té me levar consigo onde desejo.

E jurarei, senhora, que vos vejo,
jurarei qu’essa doce voz me soa.
Nesta imaginação só me sostenho.
António Ferreira
- Poemas Lusitanos
CALENDÁRiO

17MAI-15SET2018 - Em Lisboa, Arquivo Fotográfico Municipal expõe Fotografias de Trabalho. E Outros Desenhos de Carlos Nogueira.

20MAI-2SET2018 - Em Vila Real, Museu da Vila Velha apresenta
Exposição Cancelada de João Dixo (1941-2012), sendo curadora Paula Pinto. IMAG.420

COMENTÁRiO

Gaibéus, 1940
Gaibéus tem a sua história. Banal talvez, às vezes ingénua, noutras sábia ou astuta, mais do que tudo dramática. Gaibéus nasceu quando muitos morriam por nós. Não o esqueçamos.
Seria absurdo, mesmo num mundo paradoxal, olvidar o que a esses devemos. Impõe-se recordar certas datas: em Março de 1938 as tropas hitlerianas entravam na Áustria; em Setembro ocupavam o território dos Sudetas e conseguiam a paralisia estratégica da Checoeslováquia; em Março de 1939, ainda sem combate, o nazismo ocupava o resto daquele país; em 1 de Setembro de 1939 penetrava na Polónia. Seguiu-se a segunda grande guerra, que deixou o rasto do seu apocalipse: 55 milhões de mortos e 5 milhões de desaparecidos.
Pressentiram-na desde 1936 muitos homens desse tempo. Eu estava com eles. Gaibéus germinou nessa época e foi consciência alertada antes de ser romance. Quem o ler, portanto, deve ligá-lo às coordenadas da história de então. Só dessa forma saberá lê-lo na íntegra.
Este romance não pretende ficar na literatura como obra de arte. Quer ser, antes de tudo, um documentário humano fixado no Ribatejo. Depois disso, será o que os outros entenderem.
Alves Redol
(1965)

MEMÓRiA

24NOV1929-2011 - Carlo Peroni, aliás Perogatt: Ilustrador e animador italiano, co-criador de Calimero (1963) - «Em Itália, a banda desenhada ainda é considerada um produto de segunda categoria, para crianças, enquanto noutros países goza de uma justa consideração, e os leitores são em geral mais velhos. Entre nós, os quadradinhos destinam-se aos rapazes, os adultos envergonham-se de os adquirir. Para mim, e desde que tenham qualidade, podem agradar a toda a gente» (2009 - a Piero Tonin). IMAG.389

1783-26NOV1859 - Dietrich Knickerbocker, ou Jonathan Oldstyle, ou Geoffrey Crayon, aliás Washington Irving: Escritor americano, autor de A Lenda do Cavaleiro Sem Cabeça - «Uma língua afiada é a única ferramenta que fica ainda mais cortante pelo uso continuado». IMAG.240-413-674

26NOV1909-1994 - Eugen Ionescu, aliás Eugène Ionesco: Dramaturgo francês, de origem romena, autor maior do teatro do absurdo - «Não há religião para a qual a vida de todos os dias não seja considerada uma prisão; e não existe filosofia ou ideologia em que não transpareça que vivemos em alienação. Um homem com alma não é como os outros homens… Pela minha parte, sempre desconfiei das verdades colectivas». IMAG.252-460

26NOV1919-2013 - Frederik George Pohl Jr, aliás Frederik Pohl: Escritor e editor americano, mestre de ficção científica, autor de Ultimato à Terra - «Eis o meu objectivo: reestruturar o mundo em que vivemos, e depois ficar à espera do que acontece». IMAG.481

1911-28NOV1969 - José María Arguedas Altamirano, aliás José Maria Arguedas: Escritor e antropólogo peruano - «Illa denomina certa espécie de luz e os monstros que nasceram feridos pelos raios da lua. Illa é um menino de duas cabeças ou um bezerro que nasce decapitado; ou um penhasco gigantesco, todo negro e luzidio, cuja superfície é atravessada por um largo veio de rocha branca, de opaca luz; é também illa uma maçaroca cujas fileiras de milho se entrecruzam ou formam remoinhos; são illa os touros míticos que habitam no fundo dos lagos solitários, das altas lagoas rodeadas de espadana, povoadas de patos negros. Todos os illa causam o bem ou o mal, mas sempre no grau supremo.» (Os Rios Profundos).

1528-29NOV1569 - António Ferreira: Escritor português, poeta e dramaturgo - «Não cabe em mim tal bem-aventurança. / É pouco uma alma só, pouco uma vida, / Quem tivesse que dar mais a tal fogo! // Contente a alma dos olhos água lança / Pelo em si mais deter, mas é vencida / Do doce ardor, que não obedece a rogo.» (Poemas Lusitanos). IMAG.187-244

1911-29NOV1969 - António Alves Redol: Escritor português - Um autor «nasce todos os dias, insubmisso e firme, tanto para detectar injustiças, qualquer que seja a sociedade onde viva, como para repudiar o próprio ripanço que se apodera de alguns». IMAG.107-256-347-352-500-610

VISTORiA

A Cantora Careca

CENA I
(Interior burguês de uma casa inglesa, com poltronas inglesas. Tarde inglesa. O Sr. Smith, inglês, sentado na poltrona com chinelos ingleses, fuma o seu cachimbo inglês, lendo um jornal inglês, perto da lareira inglesa. Usa óculos ingleses e um pequeno bigode esbranquiçado inglês. Ao seu lado, numa outra poltrona inglesa, a Sra. Smith, inglesa, remenda meias inglesas. Um longo momento de silêncio inglês. O relógio inglês dá dezassete badaladas inglesas).
SRA. SMITH: Veja, são nove horas. Tomamos sopa, comemos peixe, batatas com toucinho e salada inglesa. As crianças beberam água inglesa. Comemos bem esta noite. É porque moramos nos arredores de Londres e o nosso nome é Smith.
SR. SMITH (continua a ler, estala a língua)
SRA. SMITH: As batatas vão muito bem com toucinho e o azeite da salada não estava rançoso. O azeite do vendeiro da esquina é de melhor qualidade que o azeite do vendeiro da frente; é até melhor que o azeite do vendeiro da esquina de baixo. Mas isso não quer dizer que para eles o azeite seja ruim.
SR. SMITH (continua a ler, estala a língua)
SRA. SMITH: Mas, mesmo assim, o azeite do vendeiro da esquina é sempre melhor.
SR. SMITH (continua a ler, estala a língua)
SRA. SMITH: Mary, desta vez, cozinhou bem as batatas. Da última vez, ela não as deixou cozinhar devidamente. Eu só gosto de batatas quando elas estão bem cozidas.
SR. SMITH (continua a ler, estala a língua)
SRA. SMITH: O peixe estava fresco. Eu lambi os beiços. Repeti duas vezes. Não, três vezes. Por causa disso precisei ir à casa de banho. Você também repetiu três vezes. Só que da última vez, comeu menos que das duas primeiras vezes, enquanto eu comi muito mais. Comi mais que você esta noite. Por que será? Geralmente é você que come mais. Não é por falta de apetite.
Eugène Ionesco
(excerto)

BREVIÁRiO

E-Primatur edita Ivanhoe de Walter Scott (1771-1832); tradução de António Vivalma e Helder Guégués. IMAG.24-270-334-387

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