José
de Matos-Cruz | 24 Dezembro 2015 | Edição Kafre | Ano XII – Semanal – Fundado
em 2004
PRONTUÁRiO
CONVERGÊNCIAS
Um dos problemas mais interessantes
que se colocam na arte em quadradinhos, é a relação entre os autores, quando a
criatividade é partilhada por um argumentista e por um ilustrador. Aquele
interroga-se, inevitavelmente: que resolução gráfica irá ter esta ideia? Qual
será o aspecto das personagens? O segundo também terá questões a pôr: como
imaginaria ele esta acção? Onde pretenderia inserir estes diálogos? É por isso
que interessa que se conheçam bem, discutam projectos ou opções, mas sobretudo
que possuam estilos conciliáveis e, ainda melhor, pretendam testemunhos com
idêntica eficácia e direcção. Em circunstâncias extremas, nem assim seria
possível uma conversão. Sem especiais escrúpulos ou obsessões, eis o que sucede
- sempre na perspectiva de Art
Spiegelman - com Maus (1980-1991), e explica o fenómeno do seu sucesso, das análises e
interpretações que suscitou. Mas não é uma situação só de agora, reconhece o
artista, ou apenas sua. Vejam-se um exemplo clássico como George Herriman, ou
Chris Ware, que considera um dos melhores cartoonistas actuais. São
inconfundíveis, e isso acaba por fundamentar o seu prestígio.
VISTORiA
A Fêmea da Espécie
¨Se o camponês do Himalaia encontra um urso feroz,
ele grita para o monstro, de modo a
baixar-lhe o facho;
mas a ursa fêmea, acossada, mostra as
garras, mostra os dentes,
pois a fêmea de uma espécie é mais mortal
do que o macho.
Quando Nag, a cobra, astuto, ouve passos descuidosos,
se arrasta às vezes, de lado, evitando
algum empacho;
mas a sua companheira não se arreda do
caminho,
pois a fêmea de uma espécie é mais mortal
do que o macho.
Quando os Jesuítas pregaram para os Hurons e os Choctaws,
rezavam por não ser presas do feminino
penacho,
que elas – e não os guerreiros – é que os
faziam tremer,
pois a fêmea de uma espécie é mais mortal
do que o macho.
O peito tímido do Homem explode sem dizer nada,
pois da Mulher por Deus dada não se dispõe
com despacho,
mas a história do marido confirma a do
caçador –
pois a fêmea de uma espécie é mais mortal
do que o macho.
O Homem, urso em muitos casos, verme ou selvagem em outros,
propõe negociações e reconhece o contrato;
só muito raro é que torce a lógica da
evidência
até a extrema conclusão, num imperdoável
ato.
Medo ou tolice é que o impelem, antes de punir os maus,
a dar julgamento justo ao vilão mais
irreflexo.
O júbilo aplaca-lhe a ira; dúvida e pena
não raro
pasmam-no em muitas questões – para o
escândalo do Sexo!
Mas a Mulher por Deus dada cada fibra de seu corpo
numa questão só aplica, de ânimo aceso em
fogacho;
e por concluir a questão, prevendo falhas
futuras,
a fêmea da espécie tem de ser mais mortal
que o macho.
Quem Morte e tortura enfrenta pelos que tem junto ao seio,
não a detêm pena ou dúvida – não se curva a
fato ou piada.
Isso é diversão para homens, de que a honra
dela não pende;
Ela, a Outra Lei que nós temos, é aquela
Lei e mais nada!
como a Mãe do Infante ou como Companheira
do seu Par;
e quando, faltando Infante e Homem, clama o
seu direito
de femme (ou barão), é o mesmo o
equipamento a empregar.
Com convicções é casada, pois faltam laços maiores;
suas rusgas são seus filhos, e ai de quem
disso se esquece!
Não terá frios debates, mas pronta,
desperta, instante,
a guerrear por esposo e filho, a fêmea da
espécie.
Sem provocações e ameaças, a fêmea do urso assim briga;
e com a fala que envenena e rói, a cobra
sem dó;
e vivisseção científica do nervo até que
ele seque,
e de dor se estorça a vítima – como com o
Jesuíta a squaw!
Assim é que o Homem, covarde, quando se ajunta em concílio
com seus bravos companheiros, para ela um
lugar não rende
onde, em guerra com a Consciência e a Vida,
levanta as mãos
a um Deus de abstrata justiça – que mulher
alguma entende.
O Homem sabe! E sabe mais: que a Mulher que Deus lhe deu
deve ordenar sem impor-se, sem obrigá-lo ao
agacho;
e Ela sabe, pois o avisa, e Seus instintos
não falham,
que a fêmea da Sua espécie é mais mortal do
que o macho!
Rudyard Kipling
- Tradução de Renato Suttana
TRAJECTÓRiA
FERNANDO
LOPES – ORIGENS
¸Dois títulos
essenciais do Novo Cinema português, Belarmino
(1964) e Uma Abelha Na Chuva (1971)
são obras-primas realizadas por Fernando Lopes em períodos determinantes, e
representativas de outras tantas abrangências sobre o ser humano e o seu
universo vivencial.
Graças ao entusiasmo tutelar de António da
Cunha Telles, o seu produtor, Belarmino
assinala – em virtualidades estéticas e testemunhatórias – a convergência de
cinco personalidades essenciais: Lopes como realizador; Baptista-Bastos pela
entrevista, Augusto Cabrita na imagem, Manuel Jorge Veloso ao musicar,
Belarmino Fragoso em protagonista. Sob a aparência linear de um documentário,
transgredido já pelo desempenho do titular, seus reflexos e contradições,
patenteia-se um projecto múltiplo, complexo, na abrangência das implicações
quanto à realidade envolvente.
Assim, paralelamente à história de
Belarmino, em causa ou mitificada, também Lisboa se contrasta – uma cidade no
tempo e na acção, suas crises, tensões, ameaças e desafios. Com ele ídolo ou
herói, cúmplice ou vítima. Cabeça de cartaz ou vulto anónimo. Tal dinâmica
sobre o presente, tal dialéctica sobre o passado – pelos padrões de 1963,
quando se filmou com quatrocentos contos – logo tiveram realce promocional: «Na
multidão, um campeão destruído» revelava, pois, que era «urgente respeitar
todos os homens». Expressão dramática, entre a matéria humana e a natureza
urbana.
Cinco anos depois, Fernando Lopes iniciou a
rodagem de Uma Abelha Na Chuva, em
1968. À partida, tudo parecia contrastante: ao deambulatório testemunho
lisboeta, pelo recorte original duma figura típica, sucedeu a transposição do
romance de Carlos de Oliveira, sobre imobilistas figuras rurais. Mais se
distinguiriam, pela perfeita correspondência – em moldes conceptuais e
estéticos – entre as crispações ou transes patentes no primeiro, e as tensões
ou conflitos agora latentes. Com orçamento de oitocentos contos, «grande número
de pessoas» colaborou monetariamente.
Pouco propenso a adaptações literárias,
Lopes atraiu-se por várias «personagens e até um certo clima», recebendo
inteira autonomia do autor original. Confrontando uma comunidade – através dos
paradoxos sociais, dos exílios em que cada ser humano se aliena ou refugia. A
produção coube à Média Filmes, reclamando Lopes uma leitura crítica – entre
pesquisas e acertos – tendente «à criação dum novo código, articulado em termos
áudio-visuais». Tal referencia Uma Abelha
Na Chuva – expoente histórico e prospectivo, quanto à criatividade e como
reflexão sobre o próprio cinema.
CALENDÁRiO
04DEZ2014 - Em
Lisboa, Opus 14 expõe Esboços de Uma
Cidade de Pedro Cabral, João Catarino, Mónica Cid, Mário Linhares e José
Louro, membros do colectivo Urban Sketchers Portugal. IMAG.393
05-07DEZ2014 - Em
Matosinhos, Exponor apresenta Comic Con
Portugal - megaevento cultural promovido por City, incluindo banda
desenhada, cinema, televisão, videojogos, cosplay,
anime e mangà.
MEMÓRiA
¯ 28DEZ1775-1842 -
João Domingos Bomtempo: Compositor e pianista português, autor da Missa de Requiem à Memória de Camões
(França, 1818), de Missa Pro Defunctis e
de Variações «Alessandro In Éfeso»,
pedagogo, fundador e primeiro director do Conservatório Nacional (1835). IMAG.40-64-383-513
¸ 28DEZ1935-2012
- Fernando Lopes: Realizador português, entre os vultos do Novo Cinema -
«Gostava de imaginar que, passadas muitas décadas, haveria espectadores a
descobrir os seus filmes. Não por qualquer necessidade de reconhecimento, muito
menos de consagração. Antes porque ele esperava que esses mesmos espectadores
pudessem, de algum modo, revisitar o tempo em que cada filme tinha sido rodado»
(João Lopes). IMAG.19-63-111-203-219-261-276-278-314-345-399-408-433-521
¨ 30DEZ1865-1936
- Rudyard Kipling: Escritor britânico, distinguido com o Prémio Nobel da
Literatura (1907) - «A mulher mais idiota pode dominar um sábio. Mas é preciso
uma mulher extremamente sábia, para dominar um idiota». IMAG.229-339
¨ 1899-31DEZ1985
- João de Araújo Correia: Escritor português, médico e professor - «A primeira
canção que ouvi / Foi a da água, / Que jorrava / Clara mágoa / No tanque onde
bebiam, ao escurecer / Os animais cansados de sofrer.» (Lira Familiar). IMAG.349
ANTIQUÁRiO
¸ 28DEZ1895
- Nas caves do Grand Café do Boulevard des Capucines, em Paris, perante umas
três dezenas de pessoas, tem lugar a primeira sessão pública, paga, do
Cinématographe de Auguste e Louis Lumière; aí se viram, entre outros, La Sortie des
Usines, Arrivé d’un Train à la Ciotat
e L’Arroseur Arrosé. IMAG.64-163-181-504
¨ 29DEZ1865
- O livreiro-editor Campos Junior dá à estampa, em volume impresso, A Queda de Um Anjo, «romance político»
de Camilo Castelo Branco (1825-1890),
«uma sátira pungente a algumas cenas da vida parlamentar» (Diário de Notícias). IMAG.27-31-41-87-111-113-145-146-161-171-179-180-185-209-227-236-237-244-256-277-293-328-334-389-390-414-421-432-453-497-507-520-529-534
30DEZ1865 - Em
Portugal, recebem os diplomas de sócios do Instituto Histórico e Geográfico do
Brasil: Levy Maria Jordão (1831-1875), como correspondente; Alexandre Herculano
(1810-1877) e Luiz Augusto Rebello da Silva (1822-1871), como honorários. IMAG.11-13-31-38-95-146-199-205-220-258-268-269-309-312-321-325-338-342-364-370-384-399-412-416-430-489-519-541
BREVIÁRiO
Bertrand edita Maus de Art Spiegelman. IMAG.7-12-27-124-342
¯Harmonia Mundi edita em CD, Joseph Haydn [1732-1809]: Die Sieben Leftzen Worte
Unseres Erlősers am Kreuze por Cuarteto Casals. IMAG.40-219-228-240-269-271-272-273-275-276-282-285-295-296-322-349-365-407-440-472
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