Um
estranho efeito repercutiu o fenómeno de Manoel de Oliveira, consagrado em todo
o Mundo, sobretudo a partir da última década do século passado: as suas
referências pessoais e culturais converteram-se numa espécie de parâmetro
confluente ao próprio cinema português. Desde finais dos anos ’20, Oliveira
ousara um percurso estético, temático e artístico com a sua carreira, exemplar
e excepcional. Assim sobressaem o rosto e o vulto de um homem complexo,
intenso, cuja matriz de criador se delimita entre a sensibilidade e a
veterania, através de olhares, intuições, deixando transparecer uma sublimação
ritual de ironia e serenidade.
Manoel
Cândido Pinto de Oliveira nasceu no Porto, a 11 de Dezembro de 1908 (mas foi
registado no dia seguinte), numa família da alta burguesia industrial (lâmpadas
eléctricas Hércules; Hidro-Eléctrica de Portugal - no Rio Ave, Ermal - sobre a
qual fez o curto documentário, por 1930), influente no ramo têxtil - sector de
passamanaria - com a Fábrica 9 de Julho. Fez estudos primários no Colégio
Universal do Porto, e prosseguiu num Colégio em La Guardia , Galiza
(Espanha), a cargo dos Jesuítas. O pai, Francisco José de Oliveira, levava-o a
ver fitas de Charles Chaplin e Max Linder.
Oliveira
sonhou, então, ser actor cómico. Mas foi como desportista (ginástica, natação,
remo; atletismo - campeão de salto à vara; automobilismo - venceu um dos
circuitos da Gávea/Rio de Janeiro) que o seu nome primeiro adquiriu notoriedade,
com o irmão mais velho Casimiro de Oliveira, ganhando inúmeros prémios em
Portugal, Espanha e Brasil. Viveu uma juventude algo boémia, chegando a fazer
um número de trapézio amador, nas festas anuais do Sport Club do Porto.
Apaixonado pela aviação, logrou experiência de piloto acrobático. Em 1927,
assumiu uma actividade profissional, repartida pela indústria, com o pai, e
pela agricultura.
Logo
interessado pelo cinema, e presente no imaginário nacional desde finais da
década de ‘20 - quando se afirma a primeira geração de realizadores nossos, e
as fitas passam a ser faladas - assinalaria como autor um peculiar itinerário
temático, criativo, libelatório, estético e estilístico. Académico, fulgurante,
pedagógico. Insólito, insinuante, ao patentear uma extraordinária capacidade
com que capta tendências, impressões. Modelando-as de modo subtil, com lucidez
e talento, ao seu mundo interior de expectativas, valores, inquietações.
O
impedimento, a exclusão ou a indiferença oficial, designadamente através do
Fundo do Cinema, quase chegaram a afastar Oliveira da actividade a que
dedicaria a sua vida. Até lhe ser permitido desenvolvê-la de um modo que,
incomparável desde sempre em Portugal, poucos exemplos semelhantes tem noutros
países: um filme dirigido em cada doze meses, sendo também argumentista; todos
estreados por cá, com sucesso e prestígio em festivais lá fora. Muito se vem
questionando sobre o que o faz correr, e onde vai buscar tanto dinamismo.
Ele-próprio adiantou respostas, não isentas de sarcasmo e simbolismo: “As
árvores, à medida que envelhecem, dão mais frutos!”
Ao
distinto atleta que foi, na sua adolescência, Oliveira impôs a maturidade e a
aprendizagem árdua duma carreira de fundo. Porventura - entre os estímulos da
iconografia e os signos da lenda - superando-se por não ter, apenas, uma meta
específica! A partir dos anos ’70, acumularam-se os galardões e os louvores,
tal como se reacenderam polémicas - sobre um percurso que, remontando às
origens do cinematógrafo, se perspectivaria na vanguarda dos audiovisuais. “Na
minha cabeça há um turbilhão de ideias, de projectos. Mesmo que me proporcionem
facilidades, a minha vida não será suficiente para concretizar tudo isso”...
Virtualizando
um repositório actual de angústias, emoções, que é, simultaneamente,
premonitório e de compromisso, Manoel de Oliveira traça, afinal, os estigmas do
seu próprio imaginário - puro e tremendo, inocente ou monstruoso, poético e
solene, insolente ou expiatório, em que o tributo ancestral acaba por
transfigurar, além do testemunho sobre as adversidades, as marcas cintilantes
quanto ao futuro. “Tudo é memória, tudo resta na memória. E a memória da vida é
a arte, que existe como representação. Todos somos actores e espectadores -
estamos isolados mas, ao mesmo tempo, em sociedade”. Eis um artista exposto, na
plenitude do génio e da perplexidade. Ao vivo, no Porto, ainda em 2 de Abril de
2015.
--
José de Matos-Cruz
Sem comentários:
Enviar um comentário