sexta-feira, maio 23, 2014

IMAGINÁRIO #506

José de Matos-Cruz | 8 Março 2015 | Edição Kafre | Ano XII – Semanal – Fundado em 2004

PRONTUÁRiO
ENCANTAMENTOS
Durante décadas, e através da referência unitária a Walt Disney (1901-66), inúmeros cineastas dirigiram gigantescas equipas, tornando-se inestimável uma imagem de marca - quanto ao estilo de animação, à narração ficcional e à expressão estética. O recurso às mais recentes tecnologias, na época de feitura, converteu-se num dos principais aliciantes, com exploração no universo imaginário. A titularidade de Disney provou, sobretudo, o equilíbrio entre a liberdade criativa e uma galeria heróica indissociável dessa progenitura - que reconcilia ou absorve, mesmo, as obras literárias que lhe servem de inspiração… Em 1990, os sucessos do dissidente Don Bluth sob os auspícios de Steven Spielberg - com Fievel, Um Conto Americano (1986), ou Em Busca do Vale Encantado (1988) - terão estimulado os herdeiros de Disney, quanto a um financiamento tributário aos clássicos da animação em longa metragem. E, após provarem - através de Quem Tramou Roger Rabbit? (1988 - Robert Zemeckis) - uma opção propícia à revitalização do imaginário, precisamente em aliança com o pai de ET - O Extra-Terrestre (1982), decidiram apostar ainda mais forte num sortilégio tradicional. Assim surgiu A Pequena Sereia / The Little Mermaid (1990) por John Musker & Ron Clements…


VISTORiA
Regresso Eterno
Altos silêncios da noite e os olhos perdidos,
Submersos na escuridão das árvores
Como na alma o rumor de um regato,
Insistente e melódico,
Serpenteando entre pedras o fulgor de uma ideia,
Quase emoção;
E folhas que caem e distraem
O sentido interior
Na natureza calma e definida
Pela vivência dum corpo em cuja essência
A terra inteira vibra
E a noite de estrelas premedita.
A noite! Se fosse noite…

Mas os meus passos soam e não param,
Mesmo parados pelo pensamento,
Pelo terror que não acaba e perverte os sentidos
A esquina do acaso;
Outros mundos se somem,
Outros no ar luzes reflectem sem origem.
É por eles que os meus passos não param.
E é por eles que o mistério se incendeia.

Tudo é tangível, luminoso e vago
Na orla que se afasta e a ilha dobra
Em balas de precário sonho…
Tudo é possível porque à vida dura
E a noite se desfaz.
Em altos silêncios puros.

Mas nada impede o renascer da imagem,
A infância perdida, reavida.
Nuns olhos vagabundos debruçados,
Junto a um regato que sem cessar murmura.
Ruy Cinatti

Estarás muitas vezes à beira da morte, mas não morrerás, até que um dia chegará a tua verdadeira perdição: quando acontecer, lembrar-te-ás da promessa da tua mãe, e tornar-te-ás frade.
Nikolai Leskov
- O Peregrino Encantado
(1873 – excerto


COMENTÁRiO
A PEQUENA SEREIA
A Pequena Sereia / The Little Mermaid (1990) por John Musker & Ron Clements, parte da fábula maravilhosa de Hans Christian Andersen. Um desafio logrado em plenitude: através do recurso à maior sofisticação, voltamos ao imaginário fértil, à magia romântica e fantástica, em que evoluem as aventuras de Ariel - uma sereiazinha apaixonada por Eric, um príncipe humano e, sobretudo, deslumbrada pelo mundo aéreo que ele simboliza. Ariel tudo sacrifica ao apelo da superfície, inquietando seu pai, o Rei dos Mares, e acaba por estabelecer com a feiticeira Ursula, pérfida e voluptuosa cefalópode, um contrato quase fatídico...

A aliança entre mundos paralelos, no mar e da terra, e uma perspectiva humanista mutuamente protagonizada, por todos os seres vivos em bizarra essência naturalista, transfiguram-se com a virtualização dos sentimentos, anseios, desafios, consumados pelos desígnios do bem e do mal. Dimensões contíguas, figuras exuberantes, pais possessivos, rivais perversas - tudo se representa, ainda, pela caricatura singela mas tão aliciante sobre a realidade intemporal. Como sempre sob a chancela Walt Disney, é através de secundários que o espectáculo se anima - em caprichos, humor e solidariedade.
Aliás, assinalando o elo científico das nossas origens - com uma alegoria mítica quanto aos seres metade mulher / metade peixe, em que se estilizaram convencionalmente musas e sedutoras - os cineastas retomaram um dos mais genuínos elementos da fantasia heróica, através do signo Disney: o antropomorfismo - esse nexo prodigioso da personificação, por todas as criaturas vivas, em que se universalizaria o elã animatográfico… O envolvimento musical, logo as canções de Howard Ashman & Alan Menken, foi justamente galardoado com dois Oscars, pela Academia de Hollywood.
   
MEMÓRiA
08MAR1915-1986 - Ruy Cinatti: Poeta e antropólogo português - «Agarrei no ar um véu / esmaecido de azul, / igual ao azul do céu / iluminado pela lua. // Eu passo a vida a sonhar / iluminado pela lua.». >IMAG.95
12MAR1925-2012 - Henry Maxwell Dempsey, aliás Harry Harrison: Escritor americano de ficção científica, autor de Mundo-Nosso - «Creio que o fantástico se esgotou… Talvez tenha morrido, como género. Os actuais autores exploram-no, quando devia ser ele a explorá-los». >IMAG.422
1920-12MAR1955 - Charlie Parker: Compositor americano, saxofonista de jazz - «A música é a tua própria experiência, o teu pensamento, a tua sabedoria. Se tu não a viveres, ela jamais vai soltar-se do teu instrumento». >IMAG.32-339
1804-15MAR1895 - Cesare Cantú: Escritor e historiador italiano - «A dor possui um grande poder educativo: faz-nos melhores, mais misericordiosos, mais capazes de nos recolhermos em nós mesmos, e persuade-nos de que esta vida não é um divertimento, mas uma obrigação». >IMAG.493
1831-05MAR1895 - Nikolai Semyonovich Leskov, aliás Nikolai Leskov: Escritor russo, autor de O Peregrino Encantado - «Embora por vezes se tenha deixado levar pelo maravilhoso, a sua preferência, mesmo na devoção, é a natureza. Para ele, o homem ideal é aquele que encontra o seu caminho na terra, sem se misturar demasiado com ela» (Walter Benjamin).

COROLÁRiO
Nikolai Leskov
Leskov era uma personalidade orgulhosa, apaixonada e frequentemente irascível; no decorrer da sua vida, conseguiu indispor-se com quase toda a gente que conhecia, como também com todas as tendências e movimentos correntes na literatura russa. Isso também nos diz algo sobre a sua impetuosa independência, a sua recusa a reverenciar os lemas ideológicos do momento. A sua polémica mais conhecida, causa do virtual ostracismo que os radicais lhe impuseram durante a maior parte da sua vida, envolvia os famosos incêndios de São Petersburgo, de 1862, que coincidiram aproximadamente com a circulação das proclamações sanguinárias do Rússia Jovem, que pugnavam pelo extermínio da família real e de todos os seus partidários. A maioria acreditava que os radicais tinham começado o incêndio, e o populacho suspeitava de que a população estudantil em geral fosse simpática quanto aos supostos incendiários. Leskov, com a intenção de proteger os estudantes, publicou um artigo onde pedia à polícia que, se houvesse qualquer prova de incêndio criminoso, nomeasse os culpados para que a suspeita pudesse ser retirada das costas dos inocentes. À primeira vista, nada pareceria mais inofensivo do que tal pedido, mas o facto de Leskov ter dado algum crédito à hipótese de incêndio culposo e ter, aparentemente, apelado à polícia contra os radicais, foi o suficiente para torná-lo um homem marcado.
Joseph Frank
(excerto)
     
PARLATÓRiO
É estranho que Dostoievski seja tão lido… Em compensação, não compreendo por que não se lê Leskov. Ele é um escritor fiel à verdade!
Leon Tolstoi
     
CALENDÁRiO
1924-01ABR2014 - Jacques Le Goff: Historiador francês, distinguido com o Prémio Dr. A.H. Heineken Para a História, pois, «ao transformar a nossa visão da Idade Média, modificou a forma como lidamos com a história». >IMAG.38
03ABR2014 - ZON Audiovisuais estreia Sei Lá de Joaquim Leitão; com Leonor Seixas e António Pedro Cerdeira. >IMAG.122-269-453-490
03ABR2014 - Em Lisboa, Museu Nacional de Etnologia expõe Artes de Pesca: Pescadores, Normas, Objectos Instáveis.
    
BREVÁRiO
Disney edita em DVD, A Pequena Sereia / The Little Mermaid (1990) por John Musker & Ron Clements; com vozes originais de Jodi Benson e Christopher Daniel Barnes.

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